O animal como um elemento das relações humanas:

Embora os animais não possam ser considerados um objecto de análise sociológica, o seu impacto nas relações e vivências sociais diferenciadas merecem, pelo menos ser alvo de uma reflexão que se quer construtiva e, sempre que possível, científica.

O estudo do animal enquanto ser vivo e biológico fica entregue às Ciências Naturais, logo, procuramos antes tecer algumas considerações relativamente ao papel que desempenha naqueles que são os nossos complexos relacionamentos humanos.

Do ponto de vista dos animais domésticos, desde tempos primordiais que estes são uma figura muito presente no imaginário social (sob a forma de lendas e mitos), na religião e até na sobrevivência económica. Em Sociedades tidas como “Contemporâneas” ou “Pós Modernas”, a relação entre as pessoas e os seus animais adquiriu novos contornos, a dependência do trabalho animal diminuiu e este foi progressivamente trazido para a esfera familiar e afectiva, tornando-se num animal de companhia. A uma relação de subserviência inquestionável estabeleceu-se uma relação de benefício mútuo, onde a sobrevivência e a protecção física do animal ainda está presente e dependente do seu dono, mas em troca o animal não presta serviços economicamente úteis, torna-se antes num apoio psicossocial, de reconforto, fidelidade, dedicação e segurança.

Como em todas as dimensões da vida social, as relações, atitudes e concepções em relação aos animais são o resultado das próprias dinâmicas organizacionais e funcionais da sociedade. Assim, existem aqueles que passaram a ser animais de companhia, muitas vezes seguindo modas (por exemplo a preferência de determinadas raças em detrimento de outras) adquirindo (e reproduzindo) o estatuto social do seu dono. Os “outros”, aqueles que não detêm estatuto social, são alvo de marginalização e exclusão, destinados a vaguear na rua onde a protecção deixa de ser assegurada pelo dono e passa a depender da sorte e do acaso.

A escolha do animal de companhia, segundo um estudo efectuado por F. Héran numa amostra representativa da sociedade francesa, não é aleatória e parece obedecer a determinados perfis sociais e psicológicos. A posse de cães está mais patente em inquiridos cuja actividade profissional esteja relacionada com a detenção de património económico, como proprietários, comerciantes, artesãos ou camionistas, ou com a manutenção da ordem social como polícias e militares. Por outro lado, os gatos são eleitos, maioritariamente, por intelectuais, artistas, professores e outras categorias sociais e profissionais ligadas à burguesia ou pequena burguesia executiva e administrativa. Tal pode traduzir-se numa identificação com a independência e autonomia do animal, e ainda, numa renúncia às tradicionais formas de autoridade e de poder.

Ao ser atribuída a função de companhia ao animal, não podemos esquecer o seu papel na diminuição de sentimentos de isolamento físico e social, e embora os sentimentos de solidão estejam difundidos um pouco por toda a estrutura social, na realidade existem grupos sociais mais vulneráveis, nomeadamente a população idosa pelo afastamento do mundo do trabalho e da valorização social, entre outros casos.

Os animais, os comportamentos e as necessidades a eles associados são factor de interacção social entre os donos e os responsáveis clínicos ou com pessoas que partilhem o mesmo interesse. O passeio de rotina e o convívio entre os animais acabam por suscitar momentos de sociabilidade e encontro entre os donos que partilham confidências sobre as características e hábitos do seu animal de companhia.

Embora o animal não seja encarado como um bem de produção económica devido à sua força de trabalho, ele não deixa de ser uma fonte de lucro e crescimento económico, uma vez que a ele estão associados novos nichos de mercado muito específicos como os cuidados veterinários e todo um conjunto de produtos de alimentação, brinquedos, produtos de higiene e serviços de alojamento. Porém, como é do senso comum, estes produtos e serviços não são usufruídos de igual forma, muitos são os que se encontram excluídos de apoio básico, uns por estarem abandonados, outros porque os donos não têm capacidade económica, ou ainda, por negligência.
Em jeito de conclusão, procuramos descortinar aqui algumas das características e dinâmicas implícitas ao relacionamento entre pessoas e animais, recorrendo a algumas deambulações sociológicas “Nos Rastos da Solidão” de José Machado Pais, com o intuito de gerar, não a discórdia e o conflito, mas a reflexividade sobre uma sociedade que é tendencialmente diferente e cada vez mais complexa.

Sandra Leitão (Socióloga)

A religião, a secularização e o enquadramento do animal não racional:

A presença de caracteres sagrados e de pensamentos místicos remontam aos tempos primordiais da história humana, tendo progressivamente vindo a conquistar centralidade e penetrando em diferentes esferas da vida e do pensamento dos indivíduos. É inegável o património cultural e ético da religião (no sentido lato do termo) no modo como interpretamos e interagimos com o mundo e todos aqueles que o constituem.

Para um melhor entendimento do tema, importa definir o conceito de Religião, que como nos diz Giddens, “implica um conjunto de símbolos que invocam sentimentos de reverência ou temor, ligados a rituais ou cerimónias realizados por uma comunidade de crentes”. Assim sendo, associada a uma devoção pessoal está latente uma perspectiva colectivamente partilhada e quotidianamente (re)produzida.

Nesta nossa concepção de tudo o que nos rodeia, e nesta avaliação do que é certo ou errado, também se produzem juízos de valor e avaliações sobre o papel dos animais não racionais na vida terrena e os direitos a eles atribuídos. É de conhecimento geral que as religiões do Extremo Oriente diferem substancialmente das religiões Ocidentais. O Hinduísmo, a religião mais antiga do mundo, é politeísta e baseia-se na crença do ciclo da reencarnação, um processo do qual todos os seres vivos fazem parte. O Budismo, o Confucionismo e o Taoísmo são religiões sem deuses, que se fundamentam em princípios éticos relacionados com a coesão e unidade natural do universo. Tal como o Hinduísmo, o Budismo aceita pacificamente a diversidade de crenças e a adoração de divindades locais e regionais sem pretender unificar as visões e as crenças. O Confucionismo procura a harmonia entre a vida humana e a natureza pela adoração dos antepassados. O Taoísmo assenta em princípios idênticos, mas reforça a noção da não-violência como único caminho para a ascensão a uma vida superior.

Estas Religiões têm na sua génese uma tendência para o estabelecimento de relações mais igualitárias e valorativas da componente natural e, consequentemente, estão mais predispostas ao respeito pelos seres vivos, materializando-se muitas vezes na prática sagrada do vegetarianismo.

O Judaísmo, o Cristianismo e o Islamismo são religiões monoteístas e as mais influentes histórica e socialmente. O Judaísmo é a mais antiga destas três e surge a partir das crenças dos Hebreus, cerca de 1000 anos a.C.. Muitas referências cristãs provêem dos princípios judaicos, ganhando depois uma multiplicidade de interpretações, que deram origem a divisões teológicas como a Igreja Católica, a Protestante e a Ortodoxa.

Já o Islamismo partilha pontos comuns com o Cristianismo, embora siga os ensinamentos do profeta Maomé, segundo o qual Deus, Alá, domina todas as componentes da vida humana e natural. Estas perspectivas monoteístas parecem estabelecer posições hierarquizadas e dominantes na concepção da ordem das coisas. Primeiro está Deus, o criador, depois o Homem, feito à sua imagem, e depois todos os outros elementos e seres criados por Deus e dispostos ao serviço do Homem, apesar dos fundamentos e das regras intrínsecas diferirem.

Mas o objectivo aqui, não é a criação de uma visão determinista, apocalíptica e redutora do fenómeno religioso, por isso é central interpretar e enquadrar acções concretas capazes de romper com o imobilismo das crenças, sejam elas quais forem.

Assim, é possível que tenham sido os cristãos, por volta de 1820, a dar início ao movimento para o bem-estar animal, sendo um forte contributo para o desenvolvimento dos movimentos dos direitos do animal a partir de 1980. A própria RSCPA é o resultado de um movimento católico, baseada na caridade cristã e na necessidade de respeitar os animais como obra divina.

São também conhecidos Santos Católicos como São Lázaro e São Roque que se acompanhavam pelos fieis cães, acreditando-se nos poderes de cura das doenças da pele (lepra, úlceras, feridas e dermatoses), e o caso de São Francisco de Assis, amante dos animais e da natureza ou de São Filipe de Néri e a sua preocupação com os excluídos.

Esta abertura no modo como percebemos os animais não fracionais na vida mundana pode ser uma consequência do complexo fenómeno de secularização da sociedade. Recorrendo novamente a Giddens, este pode ser considerado “…o processo através do qual a religião perde a sua influência nas várias esferas da vida social…”, assistindo-se a uma tendência para a diminuição da adesão e da prática religiosa, simultaneamente com a perda de influência social e política. Segundo André Freire, emerge a recusa do destino e reforçam-se as crenças nas capacidades transformadoras da razão e da acção humana.

Este processo tem impacto nas estruturas sociais e subjectivas, abrindo espaço ao individualismo, ou seja, à construção pessoal do universo, da consciência e do sentido da vida, em detrimento de uma visão externa e impositiva. Todavia, seria errado pensar que tal implicaria o fim da religião, assistimos apenas a transformações neste sistema social específico, pelo incremento da autonomia e da racionalização. Nas sociedades ocidentais, a religião passa de uma esfera oficial e formal para a esfera pessoal e familiar, permitindo aquilo a que Luckmann chama de “bricolage religioso”, que no fundo traduz um processo de privatização da construção da moral e da ética, embora sempre socialmente condicionado. A crença é cada vez menos estática e imutável, mas torna-se permeável a múltiplas influências religiosas e profanas originando aquilo a que Vilaça denomina de “auto-gestão das escolhas”.

Desta liberdade individual emergem, necessariamente, visões compostas do mundo, que podem ser um dos factores de emergência dos movimentos religiosos “New Age”, que não adoptam dogmas tradicionais, mas antes procuram resgatar características religiosas, sociais e pessoais para a construção de uma fé flexível e híbrida, capaz de responder às exigências que a sociedade contemporânea faz recair sobre os indivíduos.

Desta forma, quer se adopte uma visão dogmática e tradicional, ou mais aberta e individualizada da vida, das pessoas e dos animais, importa fomentar a tolerância e o respeito pela diferença, sem que para isso tenhamos de abdicar da auto-reflexividade inerente aos animais racionais, que somos todos nós.

Sandra Leitão (Socióloga)